Bernardo Élis de Campos Curado, nasceu em Corumbá de Goiás/GO, a 15 de novembro de 1915, tendo ali falecido em 30 de novembro de 1977.

Diplomado em Ciências Jurídicas e Sociais. Secretário da Prefeitura Municipal de Goiânia e prefeito substituto, advogado, professor universitário de Literatura Brasileira, membro do Conselho Federal de Cultura, diretor substituto do Instituto Nacional do Livro.

Colaborou em periódicos.

Detentor dos prêmios Hugo de Carvalho Ramos (1944), Troféu Jabuti(1968), Afonso Arinos da ABL (1945), José Lins do Rego (1945), Troféu Cangango, (1981), entre outros.

Pertenceu à Associação Nacional de Escritores (presidente no período de 81 a 83), à Academia Brasiliense de Letras, à Academia Goiana de Letras e à Academia Brasileira de Letras.

Participou de diversas antologias, aqui e no exterior.

 

"O Tronco" (1999)

Sinopse: O filme narra a disputa pelo poder que acontece no início do século entre grandes fazendeiros do sul de Goiás, que comandam o governo, e coronéis do norte do Estado. O coletor de impostos Vicente Lemos, homem de confiança do governo, é enviado para a região norte a fim de combater o domínio absoluto exercido pela família do patriarca Pedro Melo, cujo filho, Artur, é ex-deputado e ex-aliado dos coronéis sulistas. Os Melo incendeiam a coletoria de Vicente, o que obriga o governo a enviar uma tropa com soldados

comandada pelo astuto e carreirista juiz Carvalho, que manda invadir a fazenda. Todos são presos, menos Artur, que escapa, escondendo-se. Temendo a represália, o juiz foge da região, deixando a tropa e os cidadãos sob fogo cruzado. A guerra começa, envolvendo de um lado a selvageria dos jagunços e, do outro, a violência dos soldados, que aprisionam os familiares do coronel Pedro Melo a um tronco, sob a ameaça de matá-los um a um, caso os jagunços não se rendam.

Duração: 109 min.

Roteiro e direção: João Batista de Andrade

Baseado no romance homônimo de Bernardo Elis

Elenco: Ângelo Antônio, Antônio Fagundes, Letícia Sabatela,

Rolando Boldrin, Chico Diaz, Cida Moreira, Paulo Vespúcio,

Henrique Rovira, Mariane Vicentini, Mauri de Castro, Augusto

Pompeu, Cida Mendes, Breno Moroni, Guilherme Reis, Carlos

Careqa, Guido Campos Correa, Itamar Gonçalves, Jônatas

Pinheiro, Wellington Dias, Julio Van, André Pimenta, Luzia

Divina, Almir de Amorim, Henrique Cabral, Fernanda Ivar

Prêmios:

Festival de Brasília 1999: Melhor Filme (Comissão Brasil 500 Anos), Melhor Ator Coadjuvante (Rolando Boldrin)

Festival de Recife 2000: Melhor Diretor

Festival de Natal 1999: Melhor Ator Coadjuvante (Rolando Boldrin), Melhor Cenografia

 

Entrevista com João Batista de Andrade:

O Tronco" é baseado no romance de Bernardo Élis, que, por sua vez, ficcionara uma história baseando-se em fatos históricos, uma guerra de jagunços, coronéis e soldados no início do século. O projeto era uma idéia antiga: eu havia lido o livro em 1968 e, naquele mesmo ano, resolvi procurar o autor.

O que mais me atraíra no livro, desde 68, era a fragilidade absurda do personagem central, o coletor Vicente Lemes, fragilidade que me parecia uma representação de nossa própria fragilidade política, da história de inviabilidades da esquerda brasileira até hoje. Vicente Lemes era como uma espécie de embrião de militante, nesse início de século 20 onde parece que tudo se inicia: criação do PCB, Coluna Prestes, Semana de 22, sinais de efervescência da vida urbana, trazendo ideais de liberdade, democracia, modernidade, direitos civis. Pois Vicente Lemes, de forma embrionária é o personagem desse momento.

Ele, como funcionário de um governo de coronéis, vai para o norte do estado de Goiás controlar os coronéis inimigos do governo, os Melo, justamente seus parentes. Vicente tem suas idéias, acha que os coronéis são violentos, que desrespeitam as leis. Tenta impor seus ideais, acaba acirrando o conflito. Vendo-se derrotado pela força de seus parentes, não desiste do que acha justo. Só que ele não possui força própria: para isso tem que apelar para a força do governo. E a força do governo vem, mas para agir de acordo com os interesses e ideais do próprio governo e não os de Vicente. Ele se vê, então, em meio à luta entre os poderosos reais da sociedade, uma luta sangrenta, absolutamente selvagem. O personagem Vicente perde sua fugaz capacidade

dirigente, de personagem principal. Será um mero coadjuvante em meio à barbárie.

 

Academia Brasileira de Letras:

 

 

Bernardo  Élis      

 

Bernardo Élis (B. E. Fleury de Campos Curado), advogado, professor, poeta, contista e romancista, nasceu em Corumbá de Goiás, GO, em 15 de novembro de 1915 e faleceu no dia 30 de novembro de 1997, na mesma cidade. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, sucedendo a Ivan Lins na Cadeira n. 1, em 23 de outubro de 1975, e recebido em 10 de dezembro de 1975, pelo acadêmico Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

Filho do poeta Érico José Curado e de Marieta Fleury Curado, iniciou o estudo das primeiras letras com o pai, em casa. Passou o ano de 1923 na casa do avô materno, na capital do Estado, onde se matriculou no Grupo Escolar. Depois retornou para Corumbá continuando os estudos com o pai, de quem viria o estímulo para as letras. Aos doze anos escreveu o primeiro conto, inspirado em "Assombramento", de Afonso Arinos. Em 1928, viajou com a família para Goiás, onde fez o curso ginasial no Liceu. Ampliou suas leituras, principalmente de Machado de Assis, Eça de Queirós e dos autores modernistas. Após a interrupção dos estudos por dois anos, em 1940 concluiu o curso clássico no Liceu de Goiânia. Em 1945, formou-se na Faculdade de Direito, sendo orador de sua turma.

Iniciando-se na função pública, em 1936, como escrivão da Delegacia de Polícia em Anápolis, foi nomeado escrivão do cartório do crime de Corumbá. Participou, desde 1934, dos acontecimentos literários do Brasil central, escrevendo poesias e enviando colaborações de cunho modernista para os jornais de Goiânia. Em 1939 transferiu-se para Goiânia, onde foi nomeado secretário da Prefeitura Municipal, com exercício das funções de prefeito por duas vezes.

Em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro com a intenção de aí fixar-se. Trazia um livro de poesias e outro de contos, que pretendia publicar. Sem realizar seu intento, retornou a Goiás. Fundou a revista Oeste e nela publicou o conto "Nhola dos Anjos e a cheia de Corumbá". Em 1944, seu livro de contos "Ermos e gerais" foi publicado pela Bolsa de Publicações de Goiânia, obtendo sucesso e elogios de toda a crítica nacional. Nesse ano casou-se com a poetisa Violeta Metran. Em 45, participou do 1º Congresso de Escritores de São Paulo, quando conheceu vários escritores nacionais, entre os quais Aurélio Buarque de Holanda, Mário de Andrade e Monteiro Lobato. Voltando para Goiânia, fundou a Associação Brasileira de Escritores, da qual foi eleito presidente. Ingressou no magistério como professor da Escola Técnica de Goiânia e do ensino público estadual e municipal. Em 55, publica o livro de poemas "Primeira chuva".

Nos anos subseqüentes, dedica-se ao magistério e à vida literária. Foi co-fundador, vice-diretor e professor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás, daí passando a professor de Literatura na Universidade Católica de Goiás e em vários cursos preparatórios ao vestibular das universidades. Além de colaborar com os órgãos culturais que circulam no Brasil central, participou de congressos de escritores realizados em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Goiânia, promoveu o I Congresso de Literatura em Goiás (1953) e realizou palestras, conferências e cursos literários.

Entre 1970 a 1978, desempenhou as funções de Assessor Cultural junto ao Escritório de Representação do Estado de Goiás, no Rio de Janeiro, e reassumiu o cargo de professor na Universidade Federal de Goiás. Desempenhou ainda a função de Diretor Adjunto do Instituto Nacional do Livro, em Brasília, de 1978 a março de 1985. Em 1986, foi nomeado para o Conselho Federal de Cultura, ao qual pertenceu até a extinção do órgão, em 1989.

Recebeu inúmeros prêmios literários: Prêmio José Lins do Rego (1965) e Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1966), pelo livro de contos "Veranico de janeiro"; Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, pelo seu "Caminhos e descaminhos"; Prêmio Sesquicentenário da Independência, pelo estudo "Marechal Xavier Curado, criador do Exército Nacional" (1972). Em 1987, recebeu o Prêmio da Fundação Cultural de Brasília, pelo conjunto de obras, e a medalha do Instituto de Artes e Cultura de Brasília.

Obras: Primeira chuva, poesia (1955); Ermos e gerais, contos (1944); O tronco, romance (1956); Caminhos e descaminhos, contos (1965); Veranico de janeiro, contos (1966); Caminhos dos gerais, contos (1975); André Louco, contos (1978); Seleta de Bernardo Élis. Org. de Gilberto Mendonça Teles; estudo e notas de Evanildo Bechara (1974).

 

 

Texto Escolhido de O Tronco:

 

O CORONEL PEDRO MELO

No frio da manhã, o coronel Pedro Melo ia pela estrada montado na sua grande mula, a maior de que havia notícia naquela região. Tilintava as esporas, as rodelas dos freios, as fivelas e bombas do arreio e da cabeçada. Atrás iam os dois jagunços, Mulato e Resto-de-Onça, cada qual com sua repetição alceada no ombro. Os cascos batiam nas pedras. Pelos baixos, a neblina ia densa, molhando o capim que pegava a amarelar. Os bem-te-vis cantavam pelos altos angicos.

Pedro Melo dirigia-se para a Grota, ia pôr seu filho Artur a par de tudo que se passava no povoado, queria dar-lhe parte das exigências de Vicente Lemes.

O velho olhava sobranceiro a paisagem que lhe era tão familiar. Quantas vezes já passaram por ali, nem sabia ao certo! Julgava-se o criador daquela paisagem, daqueles caminhos, daquelas cercas, daqueles muros e daquelas pontes. Tudo saíra de suas mãos ou das de seu filho. Era o criador e dono daquilo tudo. No entanto, Vicente Lemes e Valério Ferreira pretendiam governar. Essa era boa! Uns preguiçosos daquela marca! Que é que eles já haviam feito para a região, a não ser fuxicos e mais fuxicos? Pela frente corria a estrada orvalhada e ainda sem sol. Era uma estrada carreira.

Quando o velho era menino, havia ali apenas um trilheiro de jumentos. Bem se lembrava de quando a abriu. Era mocinho, que bons tempos! A estrada antiga nem merecia esse nome. Mal dava passagem para os cargueiros de mantimentos. Para ir a Barreiras era duro. Os comerciantes da Bahia até debicavam:

- Ei, seu moço, esse seu Goiás é mesmo um fim de mundo! Por que é que você não traz carro de boi para levar mercadoria?

Pedro Melo enrolava conversa e ria para disfarçar o embaraço. No fundo, ficava agravado. Na verdade não levava carro de bois a Barreiras porque a estrada não dava passagem. Dava isso para meter os burros pelas grotas e serrotes.

Os comerciantes, entretanto, tanto azucrinaram que um dia Pedro não se conteve:

- Homem, não trago carro porque acho tropa melhor de lidar.

- Quiá, quiá, quiá - estalaram as gargalhadas em redor. - Ô homem de boca dura! Tu não traz carro porque lá não existe estrada - chasqueou um dos caixeiros da Rainha da Barateza, a melhor casa comercial de Barreiras. O Melo sentiu a cara lascar fogo:

- Pois pro ano, por esse tempo, estou aportando aqui com dois carros, de boiada baia.

O dono da Rainha da Barateza, onde conversavam, saltou o balcão para fora, deu dois tapas nas costas de Pedro, mandou um caixeiro trazer a garrafa de vinho-do-porto e cálices, e distribuiu a bebida para todos:

- Olhem, vocês são testemunhas. Se esse goiano entrar aqui, pro ano, com um carro de bois, eu mando dizer uma missa cantada. Já não falo em dois, basta um carro.

De novo as gargalhadas estrondaram, enquanto os cálices se esvaziavam, como selo do trato. Valendo-se da confusão, o moço Pedro Melo despedia-se de todos e passava a perna por riba da mula estradeira, metia-lhe as esporas e saía num trote picado para alcançar a tropa que guizalhava na saída do comércio.

Pelos pousos e estirões, foi delineando o plano. Adestraria duas boiadas de 48 bois crioulos baios, faria dois carros de bois. De cá já ia escolhendo os boiecos: o filho da Beleza mais o da Dinamarca iam para o coice; o filho da Sertaneja e aquele boizinho que barganhara com o mano Antônio iriam para a guia.

Também pensava nos pés de pau para fazer os carros. Ia fazê-los de jatobá, daqueles jatobás enormes que cresciam na beira da serra.

E a estrada? Essa era a mais dura, mas ele já tinha em mente como traçar a danada por aqueles ermos que tanto conhecia. O principal era despender o menos possível.

Daí uns dias, já os machados roncavam pelos vãos de serra, abrindo a picada da estrada. Para trás as picaretas e as enxadas retiniam, aplainando mais ou menos o chão duro. Além, alguns homens davam os últimos repasses numa junta de bois baios que arrastavam toras de madeiras.

Como um general, todo encourado, Pedro ia e vinha, dando ordens, distribuindo o pessoal no trabalho, apressando a picada, pois precisava voltar ao sítio ainda em tempo de ajustar as chedas dos carros, que os carpinteiros lavravam.

- Vamos ver, vamos ver, minha gente! - As enxadas retiniam no terreno pedregoso, enquanto os paus seculares baqueavam lá adiante, clareando a mata.

Numa dessas vezes, Pedro Melo viu um preto alçar a foice para cortar uma vergôntea que se erguia bela e viçosa no meio do sarobal. Pedro segurou-lhe o braço, chamou os demais trabalhadores e se dirigiu ao foiceiro:

- Você sabe o que é isso?

O cabra ficou meio espantado, titubeou, mas o patrão encorajou:

- Vamos, diga, você sabe.

- Apois num é um broto de cedro?

- Isso mesmo - confirmou Pedro Melo, enquanto com o olhar aprovador percorria os demais homens ao redor. Também os outros suspenderam a faina e estavam curiosos pelo desfecho da cena. "O patrão mandava derrubar o mato e depois não deixava torar um ramico daquele!"

- Para que serve o cedro? - continuava perguntando o moço, sem se dirigir a ninguém. Num coro, uma vintena de vozes responde:

- Pra fazer cadeira, armário, porta, janela, oratório...

Aí as vozes se calaram, como se tivessem esgotado o rol das serventias. Pedro Melo percebeu a indecisão dos homens e os concitou:

- Vamos, vamos, para que serve mais?

- Com perdão da má palavra, serve pra caixão, meu amo - respondeu um mais afoito.

- Isso mesmo, - aprovou Pedro: - é o pau apropriado pra caixão. - Nesse ponto, perguntou: - E vocês sabem quem sou eu?

Cheios de indecisão, uns três responderam que ele era o patrão, o coronel Pedro Melo, homem poderoso e rico.

- Vocês podem bater em mim?

- Deus me livre e guarde, - disse o coro de homens descobrindo-se.

- Vocês podem me matar?

- Cruz credo, coronel! Larga pra lá essas brincadeiras sem graça.

- Pois esse raminho daí é a mesma coisa que a minha pessoa. Ninguém pode fazer mal para ele. Ele vai crescer, vai ficar um pauzão danado de forte e vai servir para meu caixão... - A frase ficou meio suspensa, enquanto o moço refletia para, a seguir, dizer com uma firmeza impressionante: - Isso, se eu morrer!

O silêncio caiu sobre os homens e sobre a paisagem. Pouco a pouco os cabras foram botando na cabeça suarenta os cacos de chapéu e daí uns instantes as ferramentas retiniam à cadência de uma canção tristemente monótona. Perto do cedrinho, ali ficou o moço Pedro Melo com seu porte arrogante, com seu semblante duro, com sua quase convicção de que não morreria, de que viveria eternamente, de que ninguém jamais o derrotaria em qualquer coisa.

Ante seus olhos agora de velho, uma névoa perpassava. A estrada foi feita, os carros de bois avançaram por ela e chegaram a Barreiras justamente no dia marcado. Foguetes riscaram o céu da cidade e as campainhas da igreja anunciaram a elevação da hóstia, na missa solene que o coronel Lima mandava dizer.

E, na verdade, tudo isso aconteceu, porque no dia exato, nem antes nem depois, precedido de foguetório, o moço Pedro Melo, na porta da Rainha da Barateza, gritava: - Ôa, boi, ôa!

- Espia o sol - gritou Resto-de-Onça.

- Eta rodeira bonita! - secundou Mulato. Estas palavras afugentaram as lembranças do velho coronel Melo, que logo já avistou o bicame e de imediato pensou em Vicente Lemes: Vicente foi sempre homem pirracento. Não sei adonde Artur estava com a cabeça quando encaminhou esse tranca para cargos públicos! Por cima, tinha ainda a velha Benedita para emprenhar Vicente pelos ouvidos com fuxicos sobre Artur e ele, Pedro.

- Foi mole, foi mole sem contia... - esta frase chegada aos ouvidos do velho, fê-lo perder o pensamento. Atrás vinham os dois capangas. Vinham alegres, souberam do caso do inventário, ouviram o velho conversando com Tozão e anteviam lutas. Afinal, estavam voltando os bons velhos tempos. Quem é que foi mole? - indagava a si mesmo o coronel: Seria Artur, seria ele Pedro? Não. Não era um nem outro, que aqueles dois homens de sua confiança não iam nunca falar um absurdo desses. Artur não era mole, nem ele...

- Foi: Damião foi mole - reafirmava Resto-de-Onça e agora o coronel ouviu bem: falavam de Damião, ah, isso sim. O capanga prosseguia: - Falar procê, se compadre Artur tivesse lá, escrita era outra.

Mulato concordou e contou um caso de outros tempos, Resto-de-Onça ainda não trabalhava com eles. Foi em Santa Maria de Taguatinga. O chefe político mais forte de lá era contra Artur, mas era um homem delicado, que não gostava de agravar ninguém. Um dia Artur com seus rapazes entrou no povoado, madrugadinha, dando tiros e gritos, apearam na porta da igreja e desfilaram pelo Largo.

- Menino, o tal sujeito delicado virou um canguçu. Num "vupe" arreuniu seu povo e se nós saíssemos ligeiro, sei não, era aquele sobrosso.

Os cavalos gemiam e arrastavam os cascos, descendo cautelosamente, a passo, a bocaina estreita e inclinada em demasia. Papa-capins e grilos voavam do capim que bordejava o caminho. A Grota estava lá embaixo, no fundo de uma furna. Os arreios ringiam e a conversa calou-se.

Na sombra, um joão-conguinho guinchava. De cá, viam-se as casas, o engenho, as capoeiras pelas encostas mostrando as velhas roças, os currais, oficina de farinha. O velho teve novamente jeriza. Era aquilo que irritava Ferreira e Vicente Lemes, era a capacidade de trabalho deles Melos. Isso que enfezava os inimigos. Afinal, Artur ali era tudo, sempre fora tudo. Desde novinho vivia lendo e estudando cada livrão grosso de meter medo, mas aprendeu: era o médico, o farmacêutico, o advogado, até o padre. Padre, muito bem: padre, porque Artur descobriu aquele tal de espiritismo, que era religião. E Artur era médio, como chamava o padre dos espíritas.

O velho sentia-se orgulhoso do filho, sentia-se envaidecido. "Era um sábio. Nem Francisco Azevedo, o famoso professor da fazenda das Taipas, que possuía um mundão de livros, nem esse podia com Artur que o entupia com duas palavras. Isso que exasperava o dorminhoco do Vicente e o fuxiqueiro do Ferreira."

Se havendo adiantado, Mulato pendurava-se da sela, fazendo correr as varas da porteira, franqueando ao velho a entrada do curral. Um bando de cachorros veio ao encontro dos chegantes, aos latidos, mas reconhecendo-os transformaram a acuação em ganidos de alegria.

Já a pé, Resto-de-Onça segurava com uma mão a camba do freio da mula, com a outra firmava o estribo e ajudava o velho a apear-se junto à calçada da frente da fazenda. Pedro Melo estava ansioso por contar ao filho a exigência absurda do coletor Vicente, mais esse fuxico do diabo do juiz Valério. Ó gentinha!

(O tronco, 1956.)